—
Bom
dia, tudo
bem!
—
Posso
contar-lhe algo de estranho que vi?
—
Claro!
—
Estava
quase chegando à casa, vi um servente de pedreiro, homem adulto
jovem, loiro, barrigudo, com um piercing grande na orelha, sem
camisa, bermuda longa e chinelos de dedo, tatuagem tribal em um dos
ombros, cabeça raspada nas laterais e coque “à la samurai” que
está na moda, no alto das junções parietais. É interessante que a
despeito da crítica do proletariado às demais classes ele quer
igualdade com a burguesia. Não é o caso de negar a equidade
universal, mas parece-me um contrassenso um trabalhador braçal
trajar-se como um playboy.
—
Observações
como essas são material para a reflexão do nosso entorno. Vi que
duas universidades privadas publicizaram os seus serviços de
escolarização à mercê de um ex-atleta e um profissional da mídia
televisiva. Não vejo onde estão as relações entre os personagens
e a área de atuação delas.
—
É
porque eles são famosos.
— É
verdade. Mas sabe-se que os artistas em sua maioria – exceto parte
considerável dos escritores e alguns representantes isolados de
outras artes – não são profissionais dentre os maiores
frequentadores da academia ou conhecedores de assuntos afetos a ela.
E se as entidades escolares públicas grevam amiúde somente por
aumentos salariais e os estabelecimentos privados utilizam-se de
celebridades para atrair clientes vê-se que elas não têm em seu
bojo a prioridade de escolarizar o seu público.
—
Não
tenho como contestar. E para ilustrar a desconexão entre o que
deveria ser uma atividade
profissional e o seu fim social veja isso: uma empresa de
locação de livros
fixou bandeirolas nos postes de sinais de trânsito
e de iluminação. É visível que a tônica da empresa não é o
fomento da leitura, o esclarecimento ou o lazer da população –
nem de longe –, também
não com a coisa pública,
mas
algo que é quase um homófono da flor petúnia, com a diferenciação
de um componente alfabético.
— As
ruas e outros lugares públicos são fontes infindáveis de
acontecimentos interessantes sob diversos aspectos de análise. Por
volta de meio-dia, duas adolescentes de tenras peles bem cuidadas,
com uniformes escolares, estavam
em um ônibus e tinham
às mãos coroas de princesas em papel de um restaurante de
refeição rápida;
o que significavam
que tiveram o almoço naquele local após as suas aulas matinais. Em
um banco atrás delas uma
outra jovem, com cerca de meia dúzia de anos a mais que elas tinha
um bebê ao colo, com chupeta na boca, não obstante a ínfima
diferença etária a cútis da mama que alimentava
o mancebinho e da face daquela moçoila mãe não apresentava
a mesma delicadeza da face das estudantes.
Não
há justeza entre os seres humanos, parece sequer que ela foi a uma
boa escola e por um tempo adequado à sua formação intelectual. Os
cabelos e outros sinais do seu corpo desfilavam
traços de sofrimento e subnutrição.
Se
lógica houvesse na existência humana, poder-se-ia predizer as
décadas vindouras daquelas quatro pessoas. As
raparigas antes de apearem da nau rolante miraram
o bebê
e comentaram
algo
entre si; uma dela aparentava
desde cedo possuir a inclinação maternal.
— Gostei
deveras dessa sua história e sua consideração. Pois permita-me
relatar uma mais. Um jovem argentino, com um chapéu de feltro,
estilo vaqueiro, tocava o seu violão, a maioria das canções era em
espanhol, outras poucas em português. Após três canções fez a
sua apresentação e a razão de sua estada no Brasil: visitar alguns
lugares nossos.
Elogiou
a terra e o povo, logo recebeu aplausos. Aproveitou o ensejo e
mostrou o chapéu invertido para amealhar alguns reais, a maioria
colaborou com pequenas moedas,
houve
parcos doadores de 5 reais, possivelmente os ditos amantes de verdade
da arte popular, sejam porque gostam ou porque são também artistas
não profissionais, fizeram-no por empatia, trataram-no como
gostariam de ser tratados em suas apresentações.
Um
jovem aproximara-se, disse que era o segundo show dele a que assistia
naquela semana. Disse que também era músico, tocava violino.
Perguntou-lhe como era aquela vida de viajante e sustentá-la com as
apresentações musicais. Ele respondeu que era muito tranquilo e
divertido, nunca houvera sentido qualquer constrangimento por alguma
autoridade ou pelo povo, sempre foi bem acolhido.
Perguntado
quanto era possível receber em um dia disse que em uma vigem de
ônibus, cerca de 20 km, conseguia 100 reais e, ainda, converteu em
dólares: 30. O que era suficiente para as despesas; às vezes, fazia
mais de uma viagem quando precisava de mais dinheiro. Sua meta era
chegar ao nordeste brasileiro, viajando de ônibus, tocando e
recebendo doações por suas canções, o que custearia a empresa.
— Temos
revezado a contação de histórias, mas agora eu gostaria de relatar
uma das inúmeras incoerências que se pode ver em nossa metrópole.
Havia uma pessoa que esmolava em uma das nossas avenidas centrais.
Ela portava um pequeno cartaz dizendo que precisava de dinheiro para
quitar a sua conta de água. Pareceu-me uma razão pouco plausível,
visto que poderia trabalhar para conseguir a quantia devida.
Entretanto, a incoerência, o disparate ou algo que se assemelhe, é
que ela fazia-o há a mais de um ano. Listarei algumas hipóteses: 1)
ela podia ser esperta, o tipo de gente que não gosta de trabalhar;
2) podia gostar de trabalhar, não gostava de ter patrão, e
considerava a mendicância uma profissão, era uma microempresária;
3) o valor da conta era tão alto que ela não conseguia o valor com
trabalho, já que não devia ter uma outra profissão, uma
qualificação que lhe possibilitasse maiores percepções. Em suma,
é uma história bizarra, e havia gente que lhe fazia doações. Já
observou alguma insensatez?
— Sim,
vejo-as diuturnamente. Não sei se é prerrogativa dos habitantes
desta cidade, os seus motoristas cientes de que fazem tolices –
desobediência às leis de trânsito – fazem-nas com aval interno
e/ou externo de que ao ligarem o pisca-alerta estão escusados da
falta, por exemplo: estacionam sobre a calçada ou em local proibido
e ligam-no. Imagino que eles pensam que o pisca-alerta tem o poder de
mudar a lei, favorecendo-lhes.
—
Deixe-me
apresentar um adendo diante das observações que fizemos. Lembrei-me
de algo que ouvi: “não se deve ver o mundo sob a ótica do
dualismo, isso pode remeter a uma maneira segmentada de observar e
pensar sobre o mundo.” E nós as fizemos sob o conceito de certo e
errado. Assim, poderiam esses personagens citados ter agido embasados
em outra forma de pensar?
— Não
sei se há outra forma de ver, observar e de se comportar no mundo,
haja vista que se alguém segue as leis, a lógica da boa convivência
em sociedade, ou mesmo em família, a convivência torna-se melhor,
logo a sociedade também.
—
Também
não sei como poderia fazer para que vivêssemos melhor em sociedade.
—
Bem,
posso contar mais um?
—
Certamente!
—
Também
vi um artista de ônibus. Ele era brasileiro, bem mais maduro que o
argentino. Estava na faixa dos 40 anos, era um pouco calvo no topo,
mas tinha os cabelos longos à altura dos ombros, usava uma barba
curta, tinha a aparência cansada, além da sua idade, talvez pelas
agruras da vida de artista amador.
Ele
cantou várias músicas brasileiras, uma de Alceu Valença, uma de
Gonzaguinha, das quais não me lembro dos nomes.
Uma
jovem, de 20 e poucos anos, estava empolgada, bem à frente dele,
encostada na sanfona do ônibus biarticulado. Entre uma música e
outra ela apresentou-se, disse que havia apreciado o talento dele em
outro lugar. Deu-lhe um beijo no rosto, um abraço apertado e longo,
o qual pareceu-me deveras aconchegante, quiçá até molestador da
testosterona, afinal era um belo, jovem e agradável espécime.
Alguém
pediu que tocasse um roque brasileiro, algo de Lulu Santos, Ultraje a
rigor, ou similares. Ele ficou desconcertado, disse que não tocava
músicas daquele estilo. Desculpou-se por não sabê-lo e por não
fazer jus ao seu nome de batismo e artístico.
Tocou
mais algumas músicas e correu o chapéu frente aos passageiros da
parte posterior do veículo. Despediu-se e desejou boa viagem a
todos.
—A
despeito das proibições de vendas e solicitações diversas nos
ônibus e terminais, algumas pessoas desobedecem-nas e, em alguns
casos, aumentam a aflição dos usuários de ônibus.
—
Sim,
as administrações têm sido omissas quanto à fiscalização de
vários setores. Uma forma interessante de refletir sobre o
gerenciamento é compará-la ao jogo de xadrez, fazem-se necessários
estratagemas para todas ações, e uns não funcionam sem os outros,
é uma retroalimentação.
—
A
propósito, você sabia que no jogo de xadrez também há roque?
—
Não
sei jogá-lo.
—Tenho
um tabuleiro, se você o quiser, posso ensiná-lo a jogar. Em vez de
falarmos e refletirmos sobre a cidade e o povo podemos refletir sobre
estratégias de ataque e de defesa no tabuleiro.
—
Combinado,
até a próxima semana, e vamos ao jogo de xadrez.
—
Até
domingo!
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