sexta-feira, 12 de maio de 2017

O ROQUE QUE NÃO SE TOCAVA

Bom dia, tudo bem?
Bom dia, tudo bem!
Posso contar-lhe algo de estranho que vi?
Claro!
Estava quase chegando à casa, vi um servente de pedreiro, homem adulto jovem, loiro, barrigudo, com um piercing grande na orelha, sem camisa, bermuda longa e chinelos de dedo, tatuagem tribal em um dos ombros, cabeça raspada nas laterais e coque “à la samurai” que está na moda, no alto das junções parietais. É interessante que a despeito da crítica do proletariado às demais classes ele quer igualdade com a burguesia. Não é o caso de negar a equidade universal, mas parece-me um contrassenso um trabalhador braçal trajar-se como um playboy.

Observações como essas são material para a reflexão do nosso entorno. Vi que duas universidades privadas publicizaram os seus serviços de escolarização à mercê de um ex-atleta e um profissional da mídia televisiva. Não vejo onde estão as relações entre os personagens e a área de atuação delas.
É porque eles são famosos.
— É verdade. Mas sabe-se que os artistas em sua maioria – exceto parte considerável dos escritores e alguns representantes isolados de outras artes – não são profissionais dentre os maiores frequentadores da academia ou conhecedores de assuntos afetos a ela. E se as entidades escolares públicas grevam amiúde somente por aumentos salariais e os estabelecimentos privados utilizam-se de celebridades para atrair clientes vê-se que elas não têm em seu bojo a prioridade de escolarizar o seu público.

Não tenho como contestar. E para ilustrar a desconexão entre o que deveria ser uma atividade profissional e o seu fim social veja isso: uma empresa de locação de livros fixou bandeirolas nos postes de sinais de trânsito e de iluminação. É visível que a tônica da empresa não é o fomento da leitura, o esclarecimento ou o lazer da população – nem de longe –, também não com a coisa pública, mas algo que é quase um homófono da flor petúnia, com a diferenciação de um componente alfabético.

— As ruas e outros lugares públicos são fontes infindáveis de acontecimentos interessantes sob diversos aspectos de análise. Por volta de meio-dia, duas adolescentes de tenras peles bem cuidadas, com uniformes escolares, estavam em um ônibus e tinham às mãos coroas de princesas em papel de um restaurante de refeição rápida; o que significavam que tiveram o almoço naquele local após as suas aulas matinais. Em um banco atrás delas uma outra jovem, com cerca de meia dúzia de anos a mais que elas tinha um bebê ao colo, com chupeta na boca, não obstante a ínfima diferença etária a cútis da mama que alimentava o mancebinho e da face daquela moçoila mãe não apresentava a mesma delicadeza da face das estudantes.
Não há justeza entre os seres humanos, parece sequer que ela foi a uma boa escola e por um tempo adequado à sua formação intelectual. Os cabelos e outros sinais do seu corpo desfilavam traços de sofrimento e subnutrição.
Se lógica houvesse na existência humana, poder-se-ia predizer as décadas vindouras daquelas quatro pessoas. As raparigas antes de apearem da nau rolante miraram o bebê e comentaram algo entre si; uma dela aparentava desde cedo possuir a inclinação maternal.

Gostei deveras dessa sua história e sua consideração. Pois permita-me relatar uma mais. Um jovem argentino, com um chapéu de feltro, estilo vaqueiro, tocava o seu violão, a maioria das canções era em espanhol, outras poucas em português. Após três canções fez a sua apresentação e a razão de sua estada no Brasil: visitar alguns lugares nossos.
Elogiou a terra e o povo, logo recebeu aplausos. Aproveitou o ensejo e mostrou o chapéu invertido para amealhar alguns reais, a maioria colaborou com pequenas moedas,
houve parcos doadores de 5 reais, possivelmente os ditos amantes de verdade da arte popular, sejam porque gostam ou porque são também artistas não profissionais, fizeram-no por empatia, trataram-no como gostariam de ser tratados em suas apresentações.
Um jovem aproximara-se, disse que era o segundo show dele a que assistia naquela semana. Disse que também era músico, tocava violino. Perguntou-lhe como era aquela vida de viajante e sustentá-la com as apresentações musicais. Ele respondeu que era muito tranquilo e divertido, nunca houvera sentido qualquer constrangimento por alguma autoridade ou pelo povo, sempre foi bem acolhido.
Perguntado quanto era possível receber em um dia disse que em uma vigem de ônibus, cerca de 20 km, conseguia 100 reais e, ainda, converteu em dólares: 30. O que era suficiente para as despesas; às vezes, fazia mais de uma viagem quando precisava de mais dinheiro. Sua meta era chegar ao nordeste brasileiro, viajando de ônibus, tocando e recebendo doações por suas canções, o que custearia a empresa.

Temos revezado a contação de histórias, mas agora eu gostaria de relatar uma das inúmeras incoerências que se pode ver em nossa metrópole. Havia uma pessoa que esmolava em uma das nossas avenidas centrais. Ela portava um pequeno cartaz dizendo que precisava de dinheiro para quitar a sua conta de água. Pareceu-me uma razão pouco plausível, visto que poderia trabalhar para conseguir a quantia devida. Entretanto, a incoerência, o disparate ou algo que se assemelhe, é que ela fazia-o há a mais de um ano. Listarei algumas hipóteses: 1) ela podia ser esperta, o tipo de gente que não gosta de trabalhar; 2) podia gostar de trabalhar, não gostava de ter patrão, e considerava a mendicância uma profissão, era uma microempresária; 3) o valor da conta era tão alto que ela não conseguia o valor com trabalho, já que não devia ter uma outra profissão, uma qualificação que lhe possibilitasse maiores percepções. Em suma, é uma história bizarra, e havia gente que lhe fazia doações. Já observou alguma insensatez?

Sim, vejo-as diuturnamente. Não sei se é prerrogativa dos habitantes desta cidade, os seus motoristas cientes de que fazem tolices – desobediência às leis de trânsito – fazem-nas com aval interno e/ou externo de que ao ligarem o pisca-alerta estão escusados da falta, por exemplo: estacionam sobre a calçada ou em local proibido e ligam-no. Imagino que eles pensam que o pisca-alerta tem o poder de mudar a lei, favorecendo-lhes.
Deixe-me apresentar um adendo diante das observações que fizemos. Lembrei-me de algo que ouvi: “não se deve ver o mundo sob a ótica do dualismo, isso pode remeter a uma maneira segmentada de observar e pensar sobre o mundo.” E nós as fizemos sob o conceito de certo e errado. Assim, poderiam esses personagens citados ter agido embasados em outra forma de pensar?

Não sei se há outra forma de ver, observar e de se comportar no mundo, haja vista que se alguém segue as leis, a lógica da boa convivência em sociedade, ou mesmo em família, a convivência torna-se melhor, logo a sociedade também.
Também não sei como poderia fazer para que vivêssemos melhor em sociedade.
Bem, posso contar mais um?
Certamente!

Também vi um artista de ônibus. Ele era brasileiro, bem mais maduro que o argentino. Estava na faixa dos 40 anos, era um pouco calvo no topo, mas tinha os cabelos longos à altura dos ombros, usava uma barba curta, tinha a aparência cansada, além da sua idade, talvez pelas agruras da vida de artista amador.
Ele cantou várias músicas brasileiras, uma de Alceu Valença, uma de Gonzaguinha, das quais não me lembro dos nomes.
Uma jovem, de 20 e poucos anos, estava empolgada, bem à frente dele, encostada na sanfona do ônibus biarticulado. Entre uma música e outra ela apresentou-se, disse que havia apreciado o talento dele em outro lugar. Deu-lhe um beijo no rosto, um abraço apertado e longo, o qual pareceu-me deveras aconchegante, quiçá até molestador da testosterona, afinal era um belo, jovem e agradável espécime.
Alguém pediu que tocasse um roque brasileiro, algo de Lulu Santos, Ultraje a rigor, ou similares. Ele ficou desconcertado, disse que não tocava músicas daquele estilo. Desculpou-se por não sabê-lo e por não fazer jus ao seu nome de batismo e artístico.
Tocou mais algumas músicas e correu o chapéu frente aos passageiros da parte posterior do veículo. Despediu-se e desejou boa viagem a todos.

A despeito das proibições de vendas e solicitações diversas nos ônibus e terminais, algumas pessoas desobedecem-nas e, em alguns casos, aumentam a aflição dos usuários de ônibus.
Sim, as administrações têm sido omissas quanto à fiscalização de vários setores. Uma forma interessante de refletir sobre o gerenciamento é compará-la ao jogo de xadrez, fazem-se necessários estratagemas para todas ações, e uns não funcionam sem os outros, é uma retroalimentação.

A propósito, você sabia que no jogo de xadrez também há roque?
Não sei jogá-lo.
Tenho um tabuleiro, se você o quiser, posso ensiná-lo a jogar. Em vez de falarmos e refletirmos sobre a cidade e o povo podemos refletir sobre estratégias de ataque e de defesa no tabuleiro.
Combinado, até a próxima semana, e vamos ao jogo de xadrez.
Até domingo!                                                                                                                                                                                   


   30042017